A minha avó Margarida


Hoje, dia 10 de abril, fosse a minha avó paterna viva e faria 113 anos. Desconheço as datas de nascimento dos meus restantes avós, não podendo celebrá-las. Não acalento qualquer estima particular pela celebração de aniversários e tenho até má memória para datas, combinações de números e nomes. Contudo, recordar as datas relacionadas com a vida dos meus antecessores é a minha forma de me rebelar contra a morte, e pior, o esquecimento. 
Não senti grande amor pela minha avó, mulher já afetada pela doença de Alzheimer quando a conheci, mas admirei essa mulher resistente e teimosa, um espírito compassivo, habituado à solidão e ao sacrifício. Uma santa na sua cela anónima. Era quase cega e trabalhava como se visse. Amava os seus pombos, bem como todos os animais que lhe surgissem ao caminho. Fazia um grande esforço para ler, com as folhas do jornal quase coladas ao globo ocular, porque saber ler e escrever era um luxo, o seu único luxo. Não tinha vícios. Rezava. Cantava. Pensava. A sua grande dor não foi o filho ter-lhe fugido para África nem ser pobre, mas ter de vender pombos, rolas e galinhas que os outros depois matavam para comer. Isso doía-lhe. E a mim também. Poupou uma fortuna em notas de vinte escudos que guardou numa lata enterrada na capoeira nas galinhas. Quando descobrimos a herança, décadas mais tarde - ainda era viva, mas já não sabia quem era - as notas enroladas transformaram-se em pó no momento em que foram tocadas. Ficámos com as mãos cheias de farinha de papel, pensando, cada um à sua maneira, que não é grande ideia adiar a felicidade.
Os meus restantes avós tiveram outras netas que poderão manter viva a sua memória. Esta não. Não há ninguém que possa dizer "chamou-se Margarida de Almeida e nasceu a 10 de abril de 1903, no lugar da Columbeira, na Roliça, filha de Maria Vitória e de pai cujo nome a lei da morte já soterrou." Portanto, cá estou eu cumprindo a minha revolta, e conjurando contra o nada que um dia me levará. Feliz aniversário, avó Margarida. Lembro-me de ti.

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